terça-feira, fevereiro 07, 2006

Lugar, III

As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira às vezes, uma planta
de treva.
Ela sobe dos pés e atravessa
a carne quebrada.
Nasce dos pés, ou da vulva, ou do ânus-
e mistura-se nas águas,
no sonho da cabeça.
As mulheres pensam como uma impensada roseira
que pensa rosas.
Pensam de espinho para espinho,
param de nó em nó.
As mulheres dão folhas, recebem
um orvalho inocente.
Depois a sua boca abre-se.
Verão, outono, a onda dolorosa e ardente
das semanas,
passam por cima. As mulheres cantam
na sua alegria terrena.

Que coisa verdadeira cantam?
Elas cantam.
São fechadas e doces, mudam
de cor, anunciam a felicidade no meio da noite,
os dias rutilantes, a graça.
Com lágrimas, sangue, antigas subtilezas
e uma suavidade amarga-
as mulheres tornam impura e magnífica
nossa límpida, estéril
vida masculina.
Porque as mulheres não pensam: abrem
rosas tenebrosas,
alagam a inteligência do poema com o sangue menstrual.
São altas essas roseiras de mulheres,
inclinadas como sinos, como violinos, dentro
do som.
Dentro da seiva de cinza brilhante.

O pão de aveia, as maçãs no cesto,
o vinho frio,
ou a candeia sobre a silêncio.
Ou a minha tarefa sobre o tempo.
Ou o meu espírito sobre Deus.
Digo: minha vida é para mulheres vazias,
as mulheres dos campos, os seres
fundamentais
que cantam de encontro aos sinistros
muros de Deus.
As mulheres de ofício cantante que a Deus mostram
a boca e o ânus
e a mão vermelha lavrada sobre o sexo.

Espero que o amor enleve a minha melancolia
E flores sazonadas estalem e apodreçam
docemente no ar.
E a suavidade e a loucura parem em mim,
e depois o mundo tenha cidades antigas
que ardam na treva sua inocência lenta
e sangrenta.
Espero tirar de mim o mais veloz
apaixonamento e a inteligência mais pura.
- Porque as mulheres pensarão folhas e folhas
no campo.
Pensarão na noite molhada,
no dia luzente cheio de raios.

Vejo que a morte se inspira na carne
que a luz martela de leve.
Nessas mulheres debruçadas sobre a frescura
veemente da ilusão,
nelas – envoltas pela sua roseira em brasa -
vejo os meses que respiram.
Os meses fortes e pacientes.
Vejo os meses absorvidos pelos meses mais jovens.
Vejo meu pensamento morrendo na escarpada
treva das mulheres.

E digo: elas cantam a minha vida.
Essas mulheres estranguladas por uma beleza
Incomparável.
Cantam a alegria de tudo, minha
alegria
por dentro da grande dor masculina.
Essas mulheres tornam feliz e extensa
a morte da terra.
Elas cantam a eternidade.
Cantam o sangue de uma terra exaltada.

Herberto Helder
Vamos dormir aqui

Vamos dormir aqui um bocadinho
vamos ter um manto de azeitonas
iluminar os dedos de verdades
trocar bafo com bafo enquanto é noite
vamos ouvir corações lilazes
e reverter as sombras
copular
na uva do silêncio o nosso olhar

Pedro Tamen
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o céu degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.

Sebastião Alba
Uma Pedra ao Lado da Evidência
syrinx, ficção pastoral

XX


Eu disse tudo, mas não o lugar certo.
Em cera e em metal, por mãos de gente
e estojos de veludo me deitei
e quantos me tiveram sabem quanto
amei e amo a foice do teu rosto,
os cinco ou mais sentidos que me dás.
Um sopro humano, a boca, um coração,
me tocam e alimentam, como antes
águas de chuva no lazer do pântano
quando o vento passava nos pinhais;
sou teu igual, não mais, e no meu corpo
inteiramente novo é que perdura
a liberdade, a glória do teu canto.
Desejo meu, em tua sede habito;
meu mestre, escravo, amante, pois servimos
no mesmo chão o mesmo antigo lume.

António Franco Alexandre
Quatro caprichos – Abril 1999
Agora, meu amor, saboreio
cada parte do teu corpo numa
quietude sufocante como um percurso
uma brisa tocada pelo cisne
em fuga para o infinito.
Deixo-me perder sobre ti, como um rio
sem foz, uma alma sem destino
uma fragrância lançada nas brumas
das musas pressentidas na brisa dos amantes.
Ah, musa da minha imortalidade
nascente e pôr do sol, caindo lentamente
a vida toda, meu amor, melancólica e profana
breve loucura quando, recôndita, abres
a pérola para me seduzir com o seu néctar!
Bebo a geada dos teus poros luminosos
que transcorrem misteriosamente pela tua
e minha imaginação doida, ó exagero
infindável, flutuante pulsação embriagada
mordendo os lençóis envolta por um
corpo serpenteante e sublime na procura
de uma sombra erigida às vidraças solares.

Américo Teixeira Moreira
Corpo Restituído - Dezembro 2005