quinta-feira, maio 04, 2006

As mãos

as tuas mãos são as mãos mais perfeitas meu amor
e tu bem sabes porquê.
as tuas mãos não são mãos,
mas um círculo perfeito em redor de mim
como os anéis em redor de Saturno.
as tuas mãos são como o tronco de heras
que cresce em volta do pinheiro manso no nosso jardim.
tu sabes que o pinheiro não se importa da companhia heras.

as tuas mãos nunca enxugaram as lágrimas.
mesmo quando parti e as tuas lágrimas correram
correram com a mesma certeza que o rio corre para o mar
na exacta direcção das curvas do teu rosto
umas em direcção à boca
outras precipitando-se do teu queixo
como pingos de chuva, em direcção ao abismo da terra.
as tuas mãos nunca enxugaram lágrimas
porque a terra te pede humidade para crescer
e a tua boca água para matar a sede.

as tuas mãos são flores de veludo.
suaves lilases,
rosas,
orquídeas,
papoilas, margaridas…
as tuas mãos são beijos,
as tuas mãos são bússolas,
manhãs de céu primaveril
que me abrem a porta para comprovar o sol.
as tuas mãos são os teus dedos
e os anéis de noivado e da aliança.

às vezes as tuas mãos são o sal que tempera a comida
o açúcar exacto no café
as mãos de ferro que me brune as camisas
as mãos de aço que me levantam como gruas nos momentos difíceis.
outras vezes
as tuas mãos são pirómanas
porque incendeiam cada poro da minha pele
as tuas mãos também são rebeldes
mãos de carne,
de músculo e de osso,
mãos de coração arritmado
por força do compasso mútuo das nossas ancas,
mãos firmes que me fazem arder até mais não.

as tuas mãos desenham as mesmas palavras que tua boca.
as tuas mãos escrevem cartas de amor
e nelas às vezes eu leio saudade
que é uma palavra complicada de traduzir noutras línguas
e outras mais naturais
como paz,
amor,
mãe,
irmão,
que são palavras simples sem prefixos nem sufixos,
nem aglutinações ou composições,
ou coisas demais complexas que as mãos não entendem.

as tuas mãos e as minhas nunca dirão adeus.
de mãos dadas
dizer adeus é impossível.

José Miguel De Oliveira (poesia não editada)

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Lugar, III

As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira às vezes, uma planta
de treva.
Ela sobe dos pés e atravessa
a carne quebrada.
Nasce dos pés, ou da vulva, ou do ânus-
e mistura-se nas águas,
no sonho da cabeça.
As mulheres pensam como uma impensada roseira
que pensa rosas.
Pensam de espinho para espinho,
param de nó em nó.
As mulheres dão folhas, recebem
um orvalho inocente.
Depois a sua boca abre-se.
Verão, outono, a onda dolorosa e ardente
das semanas,
passam por cima. As mulheres cantam
na sua alegria terrena.

Que coisa verdadeira cantam?
Elas cantam.
São fechadas e doces, mudam
de cor, anunciam a felicidade no meio da noite,
os dias rutilantes, a graça.
Com lágrimas, sangue, antigas subtilezas
e uma suavidade amarga-
as mulheres tornam impura e magnífica
nossa límpida, estéril
vida masculina.
Porque as mulheres não pensam: abrem
rosas tenebrosas,
alagam a inteligência do poema com o sangue menstrual.
São altas essas roseiras de mulheres,
inclinadas como sinos, como violinos, dentro
do som.
Dentro da seiva de cinza brilhante.

O pão de aveia, as maçãs no cesto,
o vinho frio,
ou a candeia sobre a silêncio.
Ou a minha tarefa sobre o tempo.
Ou o meu espírito sobre Deus.
Digo: minha vida é para mulheres vazias,
as mulheres dos campos, os seres
fundamentais
que cantam de encontro aos sinistros
muros de Deus.
As mulheres de ofício cantante que a Deus mostram
a boca e o ânus
e a mão vermelha lavrada sobre o sexo.

Espero que o amor enleve a minha melancolia
E flores sazonadas estalem e apodreçam
docemente no ar.
E a suavidade e a loucura parem em mim,
e depois o mundo tenha cidades antigas
que ardam na treva sua inocência lenta
e sangrenta.
Espero tirar de mim o mais veloz
apaixonamento e a inteligência mais pura.
- Porque as mulheres pensarão folhas e folhas
no campo.
Pensarão na noite molhada,
no dia luzente cheio de raios.

Vejo que a morte se inspira na carne
que a luz martela de leve.
Nessas mulheres debruçadas sobre a frescura
veemente da ilusão,
nelas – envoltas pela sua roseira em brasa -
vejo os meses que respiram.
Os meses fortes e pacientes.
Vejo os meses absorvidos pelos meses mais jovens.
Vejo meu pensamento morrendo na escarpada
treva das mulheres.

E digo: elas cantam a minha vida.
Essas mulheres estranguladas por uma beleza
Incomparável.
Cantam a alegria de tudo, minha
alegria
por dentro da grande dor masculina.
Essas mulheres tornam feliz e extensa
a morte da terra.
Elas cantam a eternidade.
Cantam o sangue de uma terra exaltada.

Herberto Helder
Vamos dormir aqui

Vamos dormir aqui um bocadinho
vamos ter um manto de azeitonas
iluminar os dedos de verdades
trocar bafo com bafo enquanto é noite
vamos ouvir corações lilazes
e reverter as sombras
copular
na uva do silêncio o nosso olhar

Pedro Tamen
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o céu degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.

Sebastião Alba
Uma Pedra ao Lado da Evidência
syrinx, ficção pastoral

XX


Eu disse tudo, mas não o lugar certo.
Em cera e em metal, por mãos de gente
e estojos de veludo me deitei
e quantos me tiveram sabem quanto
amei e amo a foice do teu rosto,
os cinco ou mais sentidos que me dás.
Um sopro humano, a boca, um coração,
me tocam e alimentam, como antes
águas de chuva no lazer do pântano
quando o vento passava nos pinhais;
sou teu igual, não mais, e no meu corpo
inteiramente novo é que perdura
a liberdade, a glória do teu canto.
Desejo meu, em tua sede habito;
meu mestre, escravo, amante, pois servimos
no mesmo chão o mesmo antigo lume.

António Franco Alexandre
Quatro caprichos – Abril 1999
Agora, meu amor, saboreio
cada parte do teu corpo numa
quietude sufocante como um percurso
uma brisa tocada pelo cisne
em fuga para o infinito.
Deixo-me perder sobre ti, como um rio
sem foz, uma alma sem destino
uma fragrância lançada nas brumas
das musas pressentidas na brisa dos amantes.
Ah, musa da minha imortalidade
nascente e pôr do sol, caindo lentamente
a vida toda, meu amor, melancólica e profana
breve loucura quando, recôndita, abres
a pérola para me seduzir com o seu néctar!
Bebo a geada dos teus poros luminosos
que transcorrem misteriosamente pela tua
e minha imaginação doida, ó exagero
infindável, flutuante pulsação embriagada
mordendo os lençóis envolta por um
corpo serpenteante e sublime na procura
de uma sombra erigida às vidraças solares.

Américo Teixeira Moreira
Corpo Restituído - Dezembro 2005

terça-feira, janeiro 31, 2006

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias:
os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade
Poemas 1945-1965
PARA QUÊ

Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...

Beijos de amor! Pra quê?! ... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só neles acredita quem é louca!
Beijos de amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...

Florbela Espanca
Vila Viçosa 1894-1930
Na hora de pôr a mesa, éramos cinco

na hora de pôr a mesa, éramos cinco.
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.

José Luís Peixoto
A Casa em Ruínas 2003
Amor como em casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraidíssimo percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde no café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina
Sabugal 1943


Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros se calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Porto 1919-2004
Lágrima

Cheia de penas
Cheia de penas me deito
E com mais penas
Com mais penas me levanto
No meu peito
Já me ficou no meu peito
Este jeito
O jeito de te querer tanto

Desespero
Tenho por meu desespero
Dentro de mim
Dentro de mim um castigo
Não te quero
Eu digo que não te quero
E de noite
De noite sonho contigo

Se considero
Que um dia hei-de morrer
No desespero
Que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile
Estendo o meu xaile no chão
Estendo o meu xaile
E deixo-me adormecer

Se eu soubesse
Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias
Tu me havias de chorar
Uma lágrima
Por uma lágrima tua
Que alegria
Me deixaria matar.

Amália Rodrigues
Lisboa 1920-1999

domingo, janeiro 29, 2006

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa
Viagem através duma nebulosa – 1960
Poema do Amor

Este é o poema do amor.

Do amor tal qual se fala, do amor sem mestre
Do amor.
Do amor.
Do amor.

Este é o poema do amor.

Do amor das fachadas dos prédios e dos recipientes do lixo.
Do amor das galinhas, dos gatos e dos cães, e de toda a espécie de bicho.
Do amor.
Do amor.
Do amor.

Este é o poema do amor.

Do amor das soleiras das portas
e das varandas que estão por cima dos números das portas
com begónias e avencas plantadas em tachos e terrinas.
Do amor das janelas e cortinas
Ou de cortinas sujas e tortas.

Este é o poema do amor.

Do amor das pedras brancas do passeio
Com pedrinhas pretas a enfeitá-lo para os olhos se entreterem, e as ervas teimosas a nascerem de permeio
e os homens de cócoras a raparem-nas e elas por outro lado a crescerem.
Do amor das cadeiras cá fora em redor das mesas
com as chávenas de café em cima e o toldo de riscas encarnadas.
Do amor das lojas abertas, com muitos fregueses e freguesas
a entrarem e a saírem, e as pessoas todas muito malcriadas.

Este é o poema do amor.

Do amor do sol e do luar,
do frio e do calor,
das árvores e do mar,
da brisa e da tormenta,
da chuva violenta,
da luz e da cor.
Do amor do ar que circula
e varre os caminhos
e faz remoinhos
e bate no rosto e fere e estimula.
Do amor de ser distraído e pisar as pessoas graves,
do amor de amar sem lei nem compromisso,
do amor de olhar de lado como fazem as aves,
do amor de ir, e voltar, e tornar a ir, e ninguém ter nada com isso.
Do amor de tudo quanto é livre, de tudo quanto mexe e esbraceja,
Que salta, que voa, que vibra e lateja.
Das fitas ao vento,
Dos barcos pintados,
Das frutas, dos cromos, das caixas de tintas, dos supermercados.

Este é o poema do amor.

O poema que o poeta propositadamente escreveu
só para falar de amor,
de amor,
de amor,
de amor,
para repetir muitas vezes amor,
amor,
amor,
amor,
Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico
Contar as palavras que o poeta escreveu,
tantos que,
tantos se,
tantos lhe,
tantos tu,
tantos ela,
tantos eu,
conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu
foi amor,
amor,
amor.

Este é o poema do amor.

António Gedeão
Muriel

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

Ruy Belo
Flor Preservada

Colho, maravilhado,
A flor do teu sorriso;
E tudo à minha volta
Se transfigura:
O céu é um mar azul onde navegam aves;
E as montanhas, suaves
Ondulações
Do grande berço maternal do mundo.
Perturbado,
Confundo
As sensações;
E apenas sei que a vara de condão
É o sol de pétalas que me aquece a mão.

Filha:
Os poetas são loucos.
E poucos
Acreditam
Que a loucura
É um dom do eterno em cada criatura.
Mas neste testemunho comovido,
Neste poema erguido
Sobre a campa das horas
Como um facho de luz inconformada,
Terás, intacta, pela vida fora
A rosa da inocência que és agora.


Miguel Torga
Diário VIII- 16/10/1958
O Pastor Amoroso

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo…
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima…
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor –
Tu não me tiraste a Natureza…
Tu mudaste a Natureza…
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as coisas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.

Fernando Pessoa
Heterónimo de Alberto Caeiro
O guardador de rebanhos 6/7/1914